sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Sonho três

Esfreguei os olhos e bocejei por causa da hora. Era dia de pôr as coisas a lavar e ainda não me habituara ao frio da sala das máquinas. Ao meu lado, o vizinho enfermeiro colocava um cesto na sua.
- Boas, Vítor. Penteado novo?
- Toma.
Ao princípio nem vi o que era. Estendeu-me só a mão fechada.
- No princípio do mês, trato sempre de correr as farmácias e receber os meus 10%.
- O que é isso?
Uma pen. Não percebi. Não lhe pedira nada.
- Está tudo limpo, é só ligar. Tens aí tudo o que precisas. Além disso deixei o meu número directo, se estiveres aflito.
Do outro lado da janela, um beija-flor cruzava a cacimba da manhã para ir trabalhar.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Sonho dois

Tiro um Agros do frigorífico e vou chupando devagarinho à espera do brainfreeze. A festa não aquece nem arrefece. Os aperitivos chocalham nas tigelas, dois gajos vêem televisão, a dona da casa quase ronca no sofá. Pego no telemóvel e ligo a dizer que vou chegar mais tarde. "Mas amor, eu prometi que vinha". "Não percebo porque insistes. Ainda se fosse um jantar para impressionar a patroa". "Sabes muito bem que nunca a vi. Até podia estar aqui..." Ela vira-se. "... à minha..." Perde um caracol do cabelo. "... frente..." Morde a palhinha. "... que... "Olá, Jorge". "Querida, tenho de desligar", sussurro já com a boca a beijar o visor.
O fecho aberto sobre o peito mostrava o fio de prata e falávamos como velhos conhecidos. "Esta música faz-me lembrar". "Pois é, não sabia que também que era crítico musical". "Ora, sabe que". Da única vez que nos cruzáramos na sala das facturas, não tinha reparado em como era atraente. Os aros compridos e dourados nas orelhas eram dignos de uma colónia de macacos equilibristas e realçavam-lhe o caramelo dos olhos. "Foi vê-los ao Coliseu?". "Deixe-me explicar-lhe desta forma, se eles tivessem mais uma guitarra eram uma harpa". A TV passa aquele concurso de misses e as eleições de amanhã. Ela regressa com mais uma sandocha.
"Sabe Teresa, estava eu aqui preocupado com a roupa e afinal o seu fato de treino é igual ao meu". "Tirei a primeira coisa que estava à mão". "Já não se faz este modelo". "É verdade". Deita-me um olhar maroto no caminho para o carro. Na aparelhagem ouve-se o Élvio que diz "Eu canto, eu canto, canto a amar", sobre uma versão de "Woodpeckers From Space". Até à próxima reunião de balanço, miúda.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Hoje acordei com o esquentador ligado.
Até sinais de neve
muito bem penteados

Pois, realmente camarada
Não voltará a esta cama

Tens de abrir os olhos
Então, o peixe
e a senhora desta fruta toda
vai tudo a beber vicas.

domingo, 22 de agosto de 2010

Fizeste uma narina
de alívio
quando te jardinei
o sobrolho

bonita à esquerda
soube como foi
que gostava de ti.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Sonho um

Cinco minutos. Michael puxou o penteado para trás e pousou o haltere. Não se deve deixar as senhoras à espera e, afinal, os gritos já se ouviam bem ao longe. Aquela, a loura do primeiro balcão, não consegue esconder a sapeira pela madrinha, já a outra, bate palmas que se farta. Está na hora, diz o ponteiro grande, e o followspot aponta para as portas para que ninguém mais saia. "I'm on the wire...". Sacode, sacode. Vou chegar atrasado. Michael acena às filas, umas sentadas, outras de pé, e à tuba atrás de si. Está inchado, com duas rodelas de suor penduradas nas mangas, e ainda é só o segundo número. "Remember to forget e não sei quê...". Chego mesmo no fim. Talvez não me tenha visto. Olá, Carolina. Com licença, Maria. Dona Ivone, como está? Denise já estava muito encostada à parede, mas lá consegui passar. Encostei a boca e disse. Peço desculpa, as senhoras devem estar a pensar, quem é este jovem que não deve mudar de calças há uma semana e que está interromper o espectáculo do Michael. Silêncio. Ainda bem que chegaste. Olá Michael, desculpa lá, estou só a apertar o laço, já ponho as mãos no microfone. Deixa lá, deixa lá, olha, a tua namorada está cá hoje. A sério? Sim, não queres cumprimentá-la? Não vale a pena, já a vi. Anda, vá. Ela encolhe o queixo e vem até junto de mim para me dar um beijo. Vejo no monitor de palco que fiz mal a barba, mas também não faz mal. A testa de Michael parece pingar azeite, enquanto diz. Bem, mas agora é a tua vez. É verdade, Michael, obrigado senhoras e senhoras, vou começar com uma história. Já repararam. Alguém me trocou o guião por um tabuleiro de açorda, mas como é que eu descalço esta bota. Já repararam. Artigos mal colocados, estrangeirismos sem descrição fonética, grumos por todo o lado, nem um buraco para o velho respirar. Vou ter de operar, senhoras e senhoras. Pego no garfo e abro uma linha na papa, ao nível da boca. Debaixo da açorda, o velho ainda respira. Pareceu-me ouvir algo. O que disseste. Não consigo ouvir por causa do barulho dos autocarros na rua. Dois braços moles pegam-me pelas costas, mas o coração já parou. "Acorda".