segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Sonho um

Cinco minutos. Michael puxou o penteado para trás e pousou o haltere. Não se deve deixar as senhoras à espera e, afinal, os gritos já se ouviam bem ao longe. Aquela, a loura do primeiro balcão, não consegue esconder a sapeira pela madrinha, já a outra, bate palmas que se farta. Está na hora, diz o ponteiro grande, e o followspot aponta para as portas para que ninguém mais saia. "I'm on the wire...". Sacode, sacode. Vou chegar atrasado. Michael acena às filas, umas sentadas, outras de pé, e à tuba atrás de si. Está inchado, com duas rodelas de suor penduradas nas mangas, e ainda é só o segundo número. "Remember to forget e não sei quê...". Chego mesmo no fim. Talvez não me tenha visto. Olá, Carolina. Com licença, Maria. Dona Ivone, como está? Denise já estava muito encostada à parede, mas lá consegui passar. Encostei a boca e disse. Peço desculpa, as senhoras devem estar a pensar, quem é este jovem que não deve mudar de calças há uma semana e que está interromper o espectáculo do Michael. Silêncio. Ainda bem que chegaste. Olá Michael, desculpa lá, estou só a apertar o laço, já ponho as mãos no microfone. Deixa lá, deixa lá, olha, a tua namorada está cá hoje. A sério? Sim, não queres cumprimentá-la? Não vale a pena, já a vi. Anda, vá. Ela encolhe o queixo e vem até junto de mim para me dar um beijo. Vejo no monitor de palco que fiz mal a barba, mas também não faz mal. A testa de Michael parece pingar azeite, enquanto diz. Bem, mas agora é a tua vez. É verdade, Michael, obrigado senhoras e senhoras, vou começar com uma história. Já repararam. Alguém me trocou o guião por um tabuleiro de açorda, mas como é que eu descalço esta bota. Já repararam. Artigos mal colocados, estrangeirismos sem descrição fonética, grumos por todo o lado, nem um buraco para o velho respirar. Vou ter de operar, senhoras e senhoras. Pego no garfo e abro uma linha na papa, ao nível da boca. Debaixo da açorda, o velho ainda respira. Pareceu-me ouvir algo. O que disseste. Não consigo ouvir por causa do barulho dos autocarros na rua. Dois braços moles pegam-me pelas costas, mas o coração já parou. "Acorda".